15 de set. de 2010

O Boitatá

Nas minhas recordações de infância lembro-me dos anos de Laguna de ruas muito escuras. As noites eram de uma beleza indescritível. Corria os olhos pelo céu e avistava-se com nitidez a via láctea. Parecia que, se nos esticássemos um pouco, conseguiríamos tocar nas estrelas. Era um tempo de cidades com iluminação escassa. A pequena usina instalada na área do porto para alimentar de energia dois possantes guindastes de carga, tinha também, que produzir eletricidade para parte da cidade. Isto sobrecarregava seus geradores, ocasionando seguidos blecautes e deixando a cidade, durante horas, totalmente às escuras. É nesse ambiente bucólico, propício a imaginação humana, que aconteciam os relatos de fenômenos sobrenaturais relacionados à cultura folclórica do povo. Lembro que minha mãe contava a história da aparição do Boitatá lá pelas bandas do Porto. Contava-nos que era um monstro com olhos de fogo, enormes, que corria de um lado para outro da mata perseguindo as pessoas. De dia era quase cego, à noite via tudo. O Boitatá, uma lenda do folclore açoriano, é descrito como uma espécie de cobra sobrevivente de um grande dilúvio que cobriu a terra. Para escapar ele entrou num buraco e lá ficou no escuro, assim, seus olhos cresceram. Desde então anda pelos campos em busca de restos de animais. Algumas vezes, assume a forma de uma cobra com os olhos flamejantes do tamanho de sua cabeça e persegue as pessoas nas noites sem luar. O Boitatá descrito por minha mãe era puro e singelo e sua história despertava em nós o sentimento do medo necessário para enfrentar as contingências da vida. Inconscientemente, ela acrescentava a nossa personalidade o instinto voltado para ações pensadas e contidas diante de situações adversas. A ciência, que funciona como um contraponto entre a verdade e a fé, explica o Boitatá através de um fenômeno chamado Fogo-fátuo, que são os gases inflamáveis que emanam dos pântanos, sepulturas e carcaças de grandes animais mortos, e que visto de longe parecem grandes tochas em movimento. Mas como a força da fé é, muitas vezes, infinitamente maior que a da verdade, o Boitatá continua a existir no imaginário coletivo do povo. E hoje, com o advento de todo este aparato comunicativo, ele nos aparece numa versão moderna e mais assustadora. Bem apresentado e com um falso brilho nos olhos entra, sem pedir licença, em nossos lares nos horários nobres televisivos, mentindo e pregando um tempo de maravilhas. E tudo acontece com o aval de leis criadas pelos nossos poderes constituídos, para protegê-lo. Ele não nos deixa temeroso, somente. É capaz, também, de ludibriar e acabar com o que resta da esperança de todo um povo. Tenho saudade da abençoada história do Boitatá, contada pela dona Maria. Era ingênua e despretensiosa. Só queria nos incutir a sensação do medo.