10 de jul. de 2019

Santa Ingenuidade


Nos idos da década de 1950 o estudo básico do país era dividido em primário, ginasial e secundário.
Lembro que comecei a frequentar a escola primaria em 1955 estudando no Grupo Escolar Ana Gondim. O diretor era o nosso ilustre professor Rubens Ulisséa. Eram sete anos de extrema ingenuidade, normal naquela  idade; muita desinformação, muitos tabus e uma falta de veículos de comunicação que permitissem acesso facilitado a informação. O conteúdo curricular do ensino era exemplar, mas os assuntos extracurriculares inexistiam.
Uma realidade totalmente diferente dos dias atuais. Imaginem que telefone e televisão ainda não existiam nos lares das famílias. É nesse contexto que a escola se inseria na vida dos nossos estudantes.
Tínhamos entre os dois períodos de aula, o Recreio, onde era servido uma  suculenta sopa naqueles canecões esmaltados. Nessa pausa também aproveitávamos para brincar de pegar com os colegas e correr pelas áreas do estabelecimento.  E foi, justamente, numa dessas corridas que sou abruptamente entrelaçado pelos braços de uma menina que me lascou um beijo  no rosto pegando de raspão na minha boca. Por um momento fiquei perplexo e um tanto anestesiado pela sensação gostosa de ser beijado pela menina. Mas quando me recompus, surgiu a preocupação....! Aquela menina poderia vir a ter um neném. Sim, na cabeça daquela criança dos anos 50, a fórmula era simples: beijo na boca= neném.
Voltei para sala de aula sem ter a quem recorrer. Não poderia perguntar a professora e muito menos em casa. Esse era um assunto tabu, até para os adultos, imagina para uma criança de sete anos!
Mas eu poderia contar com a ajuda de um amigo confidente para esclarecer e aconselhar sobre o acontecido- o Peco! Ele conhecia tudo, uma verdadeira enciclopédia- era uma Barsa.
Sabia muito, mas estudava noutra sala. E assim, apos a aula, fui  para casa com aquela preocupação assombrando minha cabeça.  No outro dia, cedinho, fui um dos primeiros a chegar a escola. Lá estava eu no portão do Ana Gondim esperando o Peco. Aquela espera já era uma eternidade quando, finalmente, avistei o meu amigo letrado chutando uma peteca no meio do campinho, vindo em direção ao grupo. Mal cruzou o portão e eu lhe puxei pelo braço para lhe contar o acontecido e de sua provável consequência. Ele olhou pra mim e desatou uma estridente e longa gargalhada. Contrariado e com cara de abestalhado, fiquei imóvel esperando alguma explicação do meu amigo inteligente. Afinal de contas eu precisava de uma luz.
De repente ele parou de rir e soltou sua teoria. Disse-me que nós meninos tínhamos birro para fazer xixi e que as meninas tinham pombinha!  Até aí, tudo bem! Nenhuma novidade pra mim. E continuou seu discurso dizendo que a menina somente poderia ter neném se ela pegasse minha mão e a colocasse na sua pombinha .
Era tudo que eu queria ouvir! Meu amigo Peco me livrou de uma grande preocupação. Mas, por via da duvida, daquele dia em diante, toda vez  que a menina se aproximava de mim eu empurrava minhas mãos no bolso. O seguro morreu de velho.

1 de jul. de 2019

Retalhos da memória



Vai longe no tempo a lembrança das noites de verão numa cidade pouco  iluminada. Atraves do  Porto, ainda muito movimentado por navios de pequeno porte, escoava a produção da região, trazidos pelos Trens fumacentos da estrada de ferro Dona Maria Tereza Cristina.
Sobre o Cais, dois potentes guindastes elétricos, responsáveis pelo carregamento dos navios, eram alimentados por uma pequena usina termoelétrica instalada na área portuária, cuja energia residual  iluminava as casas de uma Laguna pouco populosa. Os anos se passaram e aquela capacidade geradora instalada logo foi superada pelo consumo, ocasionando os inevitáveis e sucessivos blackouts. E vez por outra a cidade ficava,totalmente, ás escuras.
Iluminadas pelo clarão da lua cheia, as noites quentes e sem luz eram  refrescadas na amistosa familiaridade dos vizinhos. Sentadas, nas cadeiras enfileiradas em frente as casas,  as pessoas desfilavam animadas  conversas, regadas na simplicidade do cotidiano de suas vidas.
Entre um e outro assunto viajávamos com os olhos fixos na Via Láctea - uma estrada estrelar muito iluminada, desenhada no infinito, e escancaradamente visível, na escuridão limpa daquelas noites de verão.
Eramos uma sociedade de sonhos! Literalmente, "Olhávamos mais para as estrelas que para nossos pés." Como queria, que assim fizessemos, nosso gênio- fisico cosmologo-Stefen Hawkens.
No meio da sala daquela casa, uma senhora, a quem mais tarde reconheci minha avó, tecia sua renda de bilros, sentada de pernas cruzadas, em frente a uma almofada. Sob a luz tênue de uma vela, fazia aos poucos tomar forma, as toalhas que enfeitariam as cômodas e mesas do lar.
O fio com o qual  tecia as toalhas, resultava de um  processo rudimentar preparado através da folha de uma planta, chamada "tucum".
Eu, um menino nos meus oito anos, lembro-me do processo de preparação do fio.
A folha era desfiada numa madeira cheia de pregos e colocada para secar, ao sol. Com o auxilio do "rufo" - uma espécie de pião com uma grande aste, confeccionava-se a linha. Prendia-se o fiapo desfiado do tucum neste instrumento e rodava-se até a formação de um tipo de barbante fino e  resistente. Era um conhecimento da  cultura  indígena que, tempos atrás ainda existia, como tradição, na nossa comunidade da Barra  e atualmente é preservada nas comunidades açorianas da Ilha-Capital.
Naquele tempo, de valorização da convivência em grupo, as conversas eram presenciais e aconteciam no cara a cara. Fazia-se amigos com mais facilidade. Reuníamos pelo simples prazer de ver e conversar com os amigos sobre os diversos assuntos da semana. Lotavamos as sessões de cinema do Cine Mussi, as missas da matriz, as reuniões dançantes do SESC, as festinhas americanas e até o Jardim Calheiros da Graça para apreciar o desfile da meninada.
Na antiga Venda adquiríamos alimentos e demais necessidades domesticas, e o proprietário fazia anotação das compras em cadernetas, cujos valores, eram devidamente saudados pelos clientes a cada fim de mês.
A comunicação, a distancia, a disposição da sociedade era a escrita (carta e telegrama) via correio e o telefone.   Uma carta para a capital demorava, no mínimo, dez dias para chegar ao destinatário, enquanto as ligações telefônicas eram solicitadas na central telefônica da companhia. A telefonista fazia a ligação e transferia para o numero solicitante.
Os processos de elaboração de produtos eram manuais e as maquinas das linhas de produção  funcionavam  por meios mecânicos. Não se imaginava a existência da  eletrônica que viria, mais tarde, revolucionar a indústria.
Uma realidade distante da vida atual e diferente das produções em série que, mais tarde, alimentariam o comercio e surgiriam para mudar, definitivamente, o modo de vida das nossas cidades modernas.
Com o desenvolvimento perdemos o olhar das estrelas para ganharmos a eficiente iluminação artificial das hidrelétricas; e um combo cujo pacote inclui uma cidade cheia de automóveis em estacionamentos lotados, e pessoas apressadas querendo chegar a lugar nenhum. As cadeiras em frente as casas foram recolhidas para as salas de estar das famílias e, hoje, as conversas versam muito mais sobre os programas padronizados das televisões, principalmente aqueles relacionados ao mundo das telenovelas. 
Mais recentemente, o desenvolvimento tecnológico, trouxe para a palma de nossas mãos um volume de conhecimento e informação  quase instantâneo - O celular.  Digitamos mais através de emails e aplicativos e conversamos menos. Com os olhos presos nos aplicativos de conversação, onde quer que estejamos, ignoramos os acontecimentos ao  nosso redor.
O mundo da internet  abriu um leque de possibilidades jamais imaginada até mesmo por seus criadores. Compra-se de tudo virtualmente, no cartão de crédito, com entrega em domicilio, sem a necessidade de  conhecer o estabelecimento ou conversar com o vendedor.
Se por um lado essas vantagens contribuem positivamente para o aprimoramento intelectual e informativo da sociedade, de outro modo elas podem estar interferindo nas relações entre as pessoas, provocando um tipo de isolamento voluntário, capaz de nos deixar tomar gosto pela solidão.
E diante de toda essa mudança criada pela ciência que nos fascina, um incerto enredo para o futuro, se descortina  impondo a pergunta que o consagrado samba, nos setencia: Como será o amanhã? Responda quem puder. O que irá nos acontecer? Nosso destino será como Deus quiser.....