Era um cheiro, um aroma forte e bom. Quente como o verão lagunense. Ele entrava pelos cantos todos e hoje viaja pelos túneis de minha memória. Saía das muitas casquinhas de siri que se inventavam nos finais de semana. Para mim, ele começava antes, quando minha mãe se punha a amassar a farinha com a receita tradicional. Era um cenário completo, com personagens e gestos. Os elementos dessa narrativa não precisavam mudar.
Depois dessa faina de organizar a mesa e amassar os ingredientes, as casquinhas eram colocadas sobre a mesa da cozinha, prontas para ir ao fogo. Quantas? Não sei, não saberia dizer, porque meus olhos se distraíam em meio à multiplicação das delícias, enfileiradas pouco a pouco na mesa, com minha mãe a pincelá-las com gema de ovo.
Depois dos acabamentos elas se transformavam. Voltavam do fogão quentes e dourados, com muito brilho.
Elas carregavam dentro da massa o carinho que minha mãe punha em todas as fritadas. Os amigos que visitavam a casa sempre saíam com esse presente possivelmente muito desejado por todos. A música andava também pelo ambiente, junto ao calor de tudo. Solidão nenhuma cabia por ali.
Será que eu fantasiei um tanto cenário e personagens? Depois de tanto tempo, a memória ganhou licença para qualquer seleção imaginativa e livre. Talvez eu esteja me perguntando agora: “onde estão todos?” A vida anda. Os cenários mudam e também as personagens e cenários em nossas narrativas de vida.Mas a memória guarda aquela repetição que sempre cumpria o ritual da fundação do bem fazer, do espírito da comunhão. E ela sabia como ninguém preservar a família, a amizade e a união. Ouço suas risadas. Sinto o movimento da casa. Persigo pelo ar o cheiro das casquinhas. Ele ainda paira em minhas narinas. Vejo minha mãe andando pelo corredor ao lado da casa. Ela ainda acende a luz na caminhada da minha vida.
3 de jun. de 2025
10 de mai. de 2025
Por onde andas, Mulher?
Por onde andas mulher da concepção, da gestação e de todas as belezas que a ti reservou a criação.
Por onde andas mulher das sublimes canções de ninar da minha vida.
Da dor contida, das noites mal dormidas, da proteção destemida e das chineladas atrevidas.
Por onde andas, mulher da coragem disfarçada em fraqueza que mostrava com sabedoria e beleza a lição do seu dia a dia.
Da gargalhada altaneira e das diversas maneiras de tornar as dificuldades em mera brincadeira.
Por onde andas , mulher que embalastes meus sonhos de liberdade fazendo-me sentir senhor de minhas responsabilidades.
Que choravas teu pranto, calada, sem nos deixar pressentir preocupada com os muitos obstáculos dessa longa estrada.
Por onde andas mulher da palavra de conforto das horas atribuladas.
Da mão amiga, da solidariedade hipotecada, da caridade assistida e da decisão acertada.
Por onde andas mulher da fé bendita, da oração que clamava ao céu a proteção para teu filho fiel.
Da esperança infinita nas horas aflitas.
Por onde andas mulher que abraçavas com candura todas as ocorrências de tuas criaturas tanto na alegria quanto na amargura.
Por onde andas mulher, que só te vejo em antigos álbuns de fotografia, e em cada gesto em cada poesia, encontro a saudade de tua simpatia.
Por onde andas, mulher?