18 de fev. de 2024

A hora da Ave-Maria


Quando o dia sumia pela tarde, escura, feito noite, ouvíamos onde estivéssemos a hora da Ave-Maria sintonizada nos rádios de todas as casas. Então, sabíamos que nossas mães estavam nos chamando assim como nossas mães sabiam que já era hora de nos chamar. Os pais chegavam perguntando pelos meninos. Aqueles que tinham pais mais austeros eram os primeiros a deixar a rua. E sempre deixávamos a brincadeira de lado; o futebol no campinho, o jogo de pião e corríamos para nossas casas. E, naquela época, rua era qualquer lugar fora das paredes de casa. Porque muros não existiam por pura falta de necessidade. Também não havia despedidas. Somente a benção ao deitar. Tudo era uma continuação. Empresta-me que amanhã te devolvo..., outra hora te pagarei...e, assim seguia a vida. Na doença precisava-se da ajuda de todos. E ela era aplacada com o chá de cana- do- brejo ou de quebra- pedra muito farta nos quintais da vizinhança. Dos pais falava-se pouco. Sabia-se menos. Eles viviam trabalhando. Os amigos mais atentos avisavam aqueles mais distraídos: “Teu pai acabou de passar”. Tudo acontecia no tempo de duração da Ave Maria. Todos se benziam no inicio ainda na rua e no fim quando já estávamos em casa. A esquina ficava triste e vazia; e nenhum de nós, imaginava que alguns não teriam tempo de lembrar desse tempo. Outros se encontrariam com os olhos úmidos de lembranças. Outros, ainda, escreveriam sobre ela com os olhos secos e a letra tremida. Não desconfiavam que aquela foto de meninos assustados já estaria desbotada. Que nossos medos seriam outros e nossa solidão não poderia ser disfarçada combinando nada para amanhã. E não se saberia mais que o dia acabou por não haver brincadeiras a encerrar, nem gente doente e viva precisando de chá. Mas se saberia que a escuridão de fora, que anunciava a noite, seria atenuada pela iluminação elétrica das luzes da rua. E a de dentro já não seria ouvida por mais que se rezasse Ave- Maria.

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